Tabuí
Você já foi a Tabuí? Não. É claro que não. Tabuí nem está no mapa. Nem das Minas e nem das Gerais. Mas Tabuí está onde antes era Pau Branco, bem na beira do rio Sorongo. No lugar em que a coloquei. Num lugar onde só eu sei. Difícil é chegar lá se você não for muito atento. Tem de pôr muito sentido. Só uma estradinha que vai e volta servida por uma única jardineira diária. Tem também o trem de ferro que leva boi e minério pra baixo e combustível pra cima. Tabuí só fica vendo o trem passar. De vez em quando chega um ou outro passageiro no último vagão do trem. É o Misto. Misto de carga, minério, boi e gente. Nem sei porque chamam lá de cidade. Tão pequena ela é. Só umas quatro ou cinco ruazinhas e não mais que uns mil e mais alguns habitantes. Das ruas você vai conhecer duas: a do Assobio que é uma ladeira só - e que por isso engrossa as pernas das moças - e a do Comércio, onde, além de uma lojinha ou outra, uns botecos, umas biroscas e umas vendas, tem as mulheres que fazem favores e até caridade para aqueles homens pobres da pobre Tabuí. Abrindo a porta da zoninha você vai encontrar a Zildete, a Bastiana e uma ou outra que está lá de passagem juntando uma graninha pra ir pra Bel'Zonte. Povinho de Tabuí é gente boa que só vendo. Quase todo mundo de pobre pra baixo, mas conservando tradições que há muito sumiram da cidade grande. Gente muito religiosa, vivendo aos pés do Padre Anacleto que comanda a igreja matriz, a Conferência Vicentina, a Legião de Maria, a Irmandade do Santíssimo, as procissões, os costumes, as donzelas e aquelas não tanto, além do fusquinha velho. Em chegando na Santa Maria do Tabuí, hospede-se no Hotel Familiar. Não há escolha. É o único. Se você for amigo duma pinguinha, experimente a Providência, da própria terra. Não caia na besteira de falar mal da Providência que caem de pau em cima de você. Notícias e fofocas da região, música caipira da boa, além de umas musiquinhas muito fuleiras, você pode ouvir na emissora pirata que inventaram. É a Rádio Tocatudo falando pra Tabuí e para o mundo. Depois de gastar no máximo 23 minutos para conhecer a cidade andando a pé, você pode ir pra roça e apreciar a Perdição, o Pindura Saia, o Abacaxi e vai ver como essa gente vive, ama e sofre. A dificuldade é tamanha que aos poucos vai ficando mais ninguém por aquelas bibocas. Êxodo rural. Vão pra Tabuí e de lá pro mundo. Fazer a vida, nem que seja como a Ozária e a Jurema. E os que permanecem pela região estão cada vez mais cabisbaixos, desanimados, cheios de anemia, chistose, amarelão, raquitismo chagas... Banguelas também. Cada um mais que o outro. Voltando pra rua você encontrará outros personagens típicos de qualquer cidadezinha do interior. O doido, o candidato a político, os bêbados, os boêmios, os namorados, os apaixonados, os seresteiros, os da roça, os beatos, as beatas, os maníacos, os fantasmas, os sistemáticos, os forasteiros, os analfabetos, os simplórios, os simples, os pedintes, os pobres, os miseráveis... estes causos quase todos são inéditos, captados por aí a fora, num trabalho de garimpagem. Todos ouvidos da boca do povo e recheados com temperos peculiares! Portanto, caro leitor, cometa uma aventura. Faça de Tabuí o centro do seu mundo. Conheça essa gente viajando neste meu sonho!
Eurico de Andrade
Um cadim de mim
Um menino que nasceu e começou a crescer lá no interior do interior pescando piabas, traíras e chorões no anzol e no puçá... Pegando juritis e saracuras na arapuca... Chupando ingá, gabiroba, peidorreira, baco-pari, araçá, mangaba e cagaita... Montando cavalo em pêlo... Bebendo leite direto dos peitos de vacas, éguas, cabras e ovelhas... Comendo pururuca, angu com couve e torresmo... Morrendo de medo de assombração, evitando mato para não virar comida de onça... Fazendo promessas pra São Sebastião, São Jorge e Santa Bárbara... Garrando com o chefe de tudo quanto é santo para não deixar nenhum insatisfeito... Acreditando no coisa ruim, em mal-olhado, em assombração e no saci pererê... Curando cobreiro e inflamação de aroeira com a Maria Geroma, à custa de muita Ave-Maria e fio frio da faca afiada... Educado sob a batuta do chicote e ameaças de castigo de Deus, nosso Senhor... Trabalhando como candieiro guiando carro de boi... Trabalhando como meeiro e tarefeiro no cabo da enxada... Ajudando vaca na hora do parto... Vendo a Joaninha apanhando do Zé da Ponte do Bode enquanto ele cobria de mimos e beijos a mocinha Julieta... Bebendo chá de mané turé, carqueja, fedegoso, chapéu de couro, congonha... Comendo beldroega, broto de aboboreira, miolo de gueroba, frango com pequi, angu com quiabo, quibebe, inhame com leite... Assistindo a boiada passar... Vendo o trem de ferro apontar na boca de um corte e sumir na outra carregando boi, muquiça e gente... Vendo a enchente destruir as roças de arroz e milho do pai... Arrancando mandioca no muque pra farinha e o polvilho do ano... Fazendo paçoca de carne seca e socando arroz e café no monjolo de pé... Indo pra escola a uma légua de distância no cavalinho da orelha murcha... Convivendo e conversando com João Pelota, Zé Rosa, João Garrote, João Geada, Zé Ficiano, Zé Pelotin ha, João Garrotinho, João do Zé Ficiano, Zeca do Zé Ficiano, Zé Albino, João Miguel, Zé do Orico, Zé Taviano, João Vergina, Zé Cota, Zé Ramo, João do João Vergina, Severo... Só podia dar no que deu, no meio de tantos zés e joães : um escrevedor de coisas da roça.
....Quem conta um causo... Saio por aí a fora e entro discretamente em qualquer cantinho onde tá rolando uma boa prosa. E anoto tudo o que ouço para depois transformar em assunto pros meus causos e contos. Quase todos me foram contados e, como a maioria dos causos, a gente não sabe quem é o autor. Por isso, pode ser que o caro leitor já conheça um ou outro, talvez em versões diferenciadas. O meu intuito é registrar essas histórias/estórias a fim de que não se percam....
Eurico de Andrade é de Bambuí MG.